No caos que caracteriza qualquer crise, os discursos explicativos multiplicam-se tanto quanto as tentativas de impor uma visão cujo objectivo é a dominação do mundo. A «desordem[1]» caótica aberta por uma crise é também um espaço de guerra narrativa cujos vencedores serão os mais fortes (por pouco tempo), ou os mais lúcidos (por muito mais tempo).
Para o cidadão ou para o actor comum, a grande dificuldade consiste em não perder a cabeça no meio destas inumeráveis story-tellings. A missão que o GEAB assume desde Janeiro de 2006 é precisamente esta : ajudar os seus leitores a ultrapassarem as evidências e os ruídos dominantes, e tentarem aproximar-se o mais possível à realidade das evoluções de fundo. Este trabalho é importante a título individual, para as decisões que cada um tem de continuar a tomar num contexto de instabilidade ; mas é ainda mais importante num plano colectivo, pois a escolha de uma narrativa é naturalmente uma escolha do futuro. E entre a narrativa que se impõe pela força e a narrativa que se impõe pela realidade, pode uma sociedade fechar-se num sistema ideológico ou decidir empenhar-se decididamente num mundo aberto.
No século XX, os povos que penderam para os sistemas ideológicos desligados da realidade tiveram provavelmente pouca escolha. Actualmente, as sociedades ultra-conectadas e multi-informadas têm uma verdadeira responsabilidade na escolha do futuro. É por isso que o GEAB e a antecipação política, sem pretenderem ter sempre razão, propõem uma grelha de leitura das narrativas tentando optimizar a objectividade e ajudar os seus leitores a manterem o necessário distanciamento aos acontecimentos, a distinguir entre informação factual e opinião, entre informação falaciosa e fiável, e a possuírem os instrumentos para criar e ter confiança na sua própria opinião.
Já chamámos a atenção para o facto de 2015 se vir a caracterizar por uma «sobreposição monstruosa» entre o mundo do passado e o mundo do futuro, em que os dois estão, aparentemente, em igualdade : um pela potência dos instrumentos de poder de que dispõe e que estão ainda operacionais (medias, força militar, finanças?), o outro pela sua força intrínseca.
Na realidade, o mundo do passado está neste momento eminentemente enfraquecido e o seu residual de dominação deve-se aos seus esforços sobre-humanos de «fazer falar» os seus instrumentos de poder no seu lugar, esforço no qual se esgota, como a URSS se esgotou na corrida ao armamento.
A nossa equipa decidiu tornar pública a primeira parte da secção Perspectivas, sobre os instrumentos de poder em crise, sabendo que a segunda parte da secção propõe algumas análises sobre o QE Europeu e as taxas euro/dólar.
Quatro instrumentos de poder em crise
Observemos brevemente quais são estes famosos instrumentos de poder do mundo do passado :
. Os media em pleno questionamento sobre a sua objectividade, o seu profissionalismo, o seu valor acrescido, etc? com o caso Charlie como exemplo emblemático deste profundo questionamento : o contraste dos chefes de redacção aos métodos ultra autoritários e o seu orgulho tão repentino em se declararem «Je suis Charlie» não pára de interrogar classes inteiras de jornalistas, mas também os cidadãos, sobre a liberdade de expressão ; um debate saudável sobre o trabalho realizado pelos medias ocidentais sobre a Ucrânia, por exemplo, surge apenas timidamente ; a questão coloca-se sobre a pertinência de os media, organizados em pirâmide e muito pequenos (problema de canais) poderem informar correctamente sobre a imensa complexidade da realidade de um mundo multipolar, multicultural, multilinguístico, etc? ; a questão é também a da legitimidade desta autoproclamarão de «4º poder» que se parece cada vez mais a uma «usurpação de poder», o dos cidadãos, que eles tinham com efeito por missão implícita representar antes da internet. Mas a internet veio para ficar, e se os media têm um papel a desempenhar não é, certamente, o de um qualquer exercício do 4º poder, mas precisamente a inicial e incontornável missão de contribuir para uma correcta informação do 4º poder, o das pessoas. A cobertura da crise ucraniana revelou a controlo dos media por parte de diversos interesses, excepto o dos cidadãos. Os danos para esta profissão são consideráveis, impondo-lhes que persistam na sua viragem propagandista ou que se reinventem. Mas em qualquer dos casos, os media irão ter muita dificuldade em servir de maneira credível o sistema do passado.
. Um sistema financeiro centrado no dólar em pleno sobreaquecimento[2], dopado pela instabilidade e pelas oportunidades de especulação, mas totalmente desconectado das suas missões originais de financiamento da economia : a realidade é que os bancos a retalho continuam a fazer despedimentos e a abrir falência[3] ; apenas os bancos de investimento especulativo prosperam mas de uma forma que já não colhe a adesão de qualquer um : os particulares abandonaram o mundo das acções bolsistas, que se tinha aberto para eles como uma terra da abundância nos anos 90[4] ; os estados soberanos (em particular os emergentes como a China) não sabem que mais fazer para se protegerem das bolhas que pululam no seu caminho, provocando cada vez mais instabilidade e perturbando toda a planificação económica estratégica[5] ; a economia real afasta-se também, não obtendo lá o financiamento de que precisa para se desenvolver, procurando agora novas fórmulas como o crowdfunding apenas para citar um[6].
. Um «sistema-petróleo» em pleno colapso : o domínio americano sobre a suprema fonte energética do século XX colapsa sob o triplo choque da dissociação do petróleo/dólar provocado pelo aparecimento do euro em 2002 (seguido dos esforços de certos países produtores em vender o seu petróleo em euros para se libertarem da tutela dos EUA) ; pela deslocação do sistema de governo do petróleo centrado nos EUA, a OPEP, conduzida a instigar os EUA pela exploração do petróleo de xisto; e pela transição energética iniciada pela Europa em primeiro lugar, mas depressa seguida por todos os emergentes, provocando o colapso dos preços? e do que restava da credibilidade do dólar.
. Um complexo militar-industrial ocidental atacado por golpes orçamentais e planos de austeridade : e não é por o ministro alemão das finanças, Schaüble, anunciar que é necessário aumentar os orçamentos militares até 2017 ( !), que isso mudará, o que quer que seja, na descida contínua das despesas militares alemãs, que irá ver o seu orçamento baixar ainda este ano[7], no esforço da Grécia de Tsipras em diminuir fortemente a grave punção feita pelas forças armadas sobre os gregos através do financiamento de uma armada totalmente desproporcionada em relação à «ameaça» turca[8], na inquietação que a diminuição do orçamento militar britânico provoca nos americanos[9], ou na anulação do orçamento militar realizada pela Bulgária[10], etc? A realidade é que o Ocidente não tem mais os meios da sua política.
Os rangidos estridentes desses instrumentos rombos
Como é claro, nunca os quatro pilares do mundo do antes se fizeram ouvir tão alto como agora. E os rangidos estridentes de todas estas ferramentas rombas criam verdadeiros perigos :
. Do lado dos media, mesmo existindo verdadeiras tentativas de reinvenção, a tentação da ideologia subsiste com mais força, autorizando-os mesmo a combater a propaganda, essa muito oficial, da máquina mediática russa, por exemplo[11].
. Os bancos, os mercados financeiros, as estatísticas, as quantidades de multas e lucros, e sobretudo os aumentos cada dia mais improváveis dos valor das acções em bolsa enchem as páginas dos media financeiros e os espíritos hipnotizados pelo precipício que separa estas somas astronómicas da realidade económica ; mas o poder que estes números surpreendentes conferem, autoriza o sistema bancário e financeiro a ditar ainda por algum tempo a sua lei aos bancos centrais e aos governos.
. O colapso do petróleo torna mais centrais que nunca as potências petrolíferas sob pressão e em pleno imperativo de reorganização : na linha da frente surge a Arábia Saudita, que tenta controlar a região através dos exércitos islamitas daeshianos, espalhando o wahhabismo no Médio Oriente[12].
. A NATO que tentou um golpe militar sobre a Europa em 2014, aproveitando uma gestão inepta das relações de vizinhança da UE. O facto é que não é fácil pedir a carteira àquele que tem a arma? a estratégia do complexo militar-industrial ocidental é assim perfeitamente simples e lógica: capitalizar ou fazer crer nos conflitos para se tornar indispensável e conseguir manter/recuperar seus os orçamentos.
É assim que o enfraquecimento considerável das ferramentas de poder, que permanecem apanágio de um mundo do antes doente, coloca ainda graves riscos ao planeta: riscos de guerra (petróleo e NATO), riscos de fechamento ideológico do campo ocidental em si próprio (os media), riscos de colapso económico (mercados financeiros)?Para ler mais, inscreva-se o GEAB
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[1] O termo «caos» vem do grego «khaos» que significa «desordem, falha». Fonte : Wikipedia
[2] Já nos perguntámos por diversas vezes em que medida a saída de rota do padrão-dólar não se fazia mais por cima do que por baixo ; o sobreaquecimento actual da moeda americana, mesmo não sendo definitivo, parece estar em vias de consumir a transição do dólar US para fora do seu estatuto de referência mundial.
[3] A grande limpeza, em particular nos Estados Unidos foi sobretudo produzida no início da crise (2008-2010) e o número reduzido de sobreviventes torna mais anedóticas as suas dificuldades. Dito isto, os bancos continuam a sofrer, como fica provado com esta lista de despedimentos e de falências recentes :Boston Bank, Doral Bank Puerto Rico, banques hongroises, banques polonaises, ANZ Bank Australie, Bank of America, JP Morgan, Royal Bank of Scotland, etc?08/01/2013)
[4] Fonte: La Tribune, 08/01/2013; CNN, 27/12/2012
[5] Fonte: Ecns.cn, 02/03/2015
[6] Fonte: BusinessBecause, 18/02/2015
[7] Fonte: Deutsche Welle, 01/03/2015
[8] Fonte: The Guardian, 19/04/2012
[9] Fonte: Washington Post, 12/03/2015
[10] Fonte: Novinite, 24/02/2015
[11] A nossa equipa constatou um histerismo sobre a pretensa guerra mediática entre o Ocidente e a Rússia, que parece autorizar o uso do discurso propagandístico para equilibrar as forças do presente. Um jornal como Ukraine Today, por exemplo, foi criado no campo ocidental ucraniano com o objectivo oficial de fazer contrapropaganda (ainda propaganda, bem entendido). É interessante ler o que diz a BBC sobre estas questões. (03/03/2015)
[12] Fonte: New Statesman, 27/11/2014