Entrevista do ?Jornal do Commercio? com Luiz Alberto Moniz Bandeira
?Uma das maiores autoridades em relações internacionais e política externa do País, o cientista político e historiador Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira dissecou a participação dos Estados Unidos nos conflitos dos últimos 30 anos para justificar que a Guerra Fria não acabou, só mudou de atores. Em ?A Segunda Guerra Fria? (Ed. Civilização Brasileira, 714 páginas, R$ 80), Moniz Bandeira defende que os EUA estiveram por trás de acontecimentos como os conflitos no norte da África e no Oriente Médio, bem como a chamada a ?Primavera Árabe? e, mais recentemente, da guerra civil na Síria, para manter sua hegemonia global.
O plano americano é continuar a implementação da estratégia do "full spectrum dominance" (dominação de espectro total) contra a presença da Rússia e da China naquelas regiões. "O objetivo dos EUA sempre foi a derrubada do regime de Bashar al-Assad, de modo a eliminar a presença da Rússia no Mediterrâneo, fechando suas bases navais instaladas na Síria, bem como conter o avanço da China no Oriente Médio e no Magreb, isolar o Irã e cortar seus vínculos com o Hezbollah, no Líbano, de acordo com os interesses de Israel", afirma Moniz Bandeira no livro.
Com base em farta documentação e informações de fontes seletas, o historiador ainda analisa a posição do Brasil nessa nova conjuntura. Em entrevista por e-mail (Moniz Bandeira vive na Alemanha), o autor explicou o processo de pesquisa do livro e analisou os planos americanos à luz de acontecimentos recentes.
EUA E A ?DEMOCRACIA DO CAOS?
JORNAL DO COMMERCIO - O livro é uma continuação do ?Formação do Império Americano?? Devem ser lidos juntos?
LUIZ ALBERTO DE VIANNA MONIZ BANDEIRA - A ?Segunda Guerra Fria? pode ser lida separadamente. São obras distintas, embora se complementem. São indispensáveis na compreensão do mundo de hoje. As diversas obras que escrevi sobre a política internacional e as relações dos EUA com o Brasil e demais países da América Latina constituem um conjunto, embora independentes.
JC - De onde surgiu a ideia do livro? Como foi a pesquisa?
MONIZ BANDEIRA - Escrever ?A Segunda Guerra Fria? constituiu uma necessidade, a fim de expandir e atualizar o estudo sobre o Império Americano e demonstrar o alcance geopolítico e sua dimensão estratégica, em face das rebeliões no Oriente Médio e África do Norte, a partir de 2010. Conforme Antônio Gramsci ensinou, "se escrever história significa fazer a história do presente, um grande livro de história é aquele que, no presente, ajuda as forças em desenvolvimento a converterem-se em mais ativas e factíveis". O objetivo de ?A Segunda Guerra Fria? é mostrar o que está por trás desses acontecimentos, em que as guerras já não são entre Estados, mas contra entidades não estatais, forças não convencionais, que não constituem massa orgânica, como um Exército, mas grupos autônomos, que se articulam, sobretudo, através da internet e mídias sociais.
JC - Nesse cenário, quem tem mais poder: nações ou grandes corporações?
MONIZ BANDEIRA - As grandes corporações e o sistema financeiro internacional, que é dominante, necessitam dos Estados, conquanto não dispõem de legitimidade, de meios para articular os interesses, organizar e comandar as sociedades que de um modo ou de outro representam. A "full spectrum dominance" (dominação de espectro total), que os EUA almejam implantar, significa a ampliação e consolidação de sua hegemonia planetária, arrogando-se à condição de única potência verdadeiramente soberana sobre a Terra, ao mesmo tempo em que tratava de derrogar, unilateralmente ou por meio da ONU, com o apoio das potências da União Europeia, o princípio democrático da igualdade de todas as nações, e encoraja a desarticulação dos Estados nacionais. Assim, os EUA fazem avançar seus interesses políticos e geopolíticos, por intervenções militares, sob o rótulo de "humanitárias" e proteção de civis, que tendiam a modificar o conceito de soberania nacional, relativizá-la e desligá-la do Estado-nação. Isso ressuscita, sob outra capa e em outras circunstâncias, a doutrina das "fronteiras ideológicas" dos anos 60, não mais reconhecendo o direito de todas as nações à autodeterminação e independência política. O tipo de Estado nacional, como se formou nos séculos 16 e 17, gradativamente começou a desaparecer, com a globalização. E o objetivo dos EUA e seus sócios da Europa é converter o mundo todo em sua zona de investimentos, sob a segurança e proteção, com a OTAN, como gendarme do sistema financeiro e das corporações e internacionais.
JC - A ?Primavera Árabe? saiu como os EUA planejavam? Qual o saldo para a região atualmente?
MONIZ BANDEIRA - O saldo é a catastrófica fragmentação dos Estados criados pelos acordos entre França e Grã-Bretanha após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), complementando as desastrosas experiências de mudança de regime que os EUA promoveram no Afeganistão, Iraque, Líbia etc. O que se instalou nos países da África do Norte, Oriente Médio e Afeganistão foi a ?democracia do caos e do terror?. A guerra civil entre sunitas e xiitas cada vez mais se intensifica no Iraque. Na Líbia e na Somália, não há Estado, os governos virtualmente inexistem, as milícias não renunciam às armas, constituem o poder real. Ao mesmo tempo, comandos do ?Navy Seal? dos EUA, assistidos pelo FBI e pela CIA, continuam a intervir nesses países, realizando intervenções e matando verdadeiros e/ou supostos terroristas. E para a Síria, os mercenários e terroristas, grande parte oriunda de outros países, promovem a ?Jihad? contra o regime de Bashar al-Assad, com armas enviadas pela a Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes Unidos, bem como importadas da Líbia, fornecidas pela OTAN ou capturadas nos arsenais de Muamar Kadafi.
JC - Como o Brasil se encaixa na estratégia de dominação americana nessa Segunda Guerra Fria?
MONIZ BANDEIRA - Em 1971, o embaixador João Augusto de Araújo Castro, falando aos estagiários da Escola Superior de Guerra, disse que "o Brasil está condenado à grandeza", por sua extensão territorial, massa demográfica, composição multiétnica, de origem europeia e africana, pelo seu ordenamento socioeconômico e, sobretudo, sua incontida vontade de desenvolvimento e progresso. O Brasil apresenta semelhanças com os EUA - países com enorme extensão territorial. Possui os mais diversos recursos minerais, uma agricultura altamente produtiva e uma indústria sofisticada, apesar da assimetria. Suas relações, entretanto, nunca foram tão suaves como se supõe. No século 19, o governo brasileiro suspendeu três vezes (1827, 1847 e 1869) as relações diplomáticas com os EUA. O Brasil, apesar dos esforços dos EUA para mantê-lo como importador de manufaturas, tornou-se a maior potência industrial do Hemisfério Sul, o que se lhes configurou como um desafio à sua hegemonia nas Américas. E a rivalidade, tanto comercial quanto política, acendeu-se e recrudesceu a partir dos anos 1950. Os EUA jamais admitiram que o Brasil desenvolvesse uma política externa independente das diretrizes do Departamento de Estado. A hegemonia dos EUA, posta em cheque pela crise financeira, econômica e social deflagrada em entre 2007 e 2008, ainda mais se debilitou, na medida em que sua poderosa engrenagem militar não conseguiu triunfar no Afeganistão nem estabelecer a paz no Iraque. Porém, o perigo que representa uma grande potência, tecnologicamente superior, mas com enormes carências, sobretudo de energia, pode ser muito maior quando ela perde a preeminência, e quer estabelecer a "full spectrum dominance", do que quando expandia seu império. O Brasil, entretanto, continua vulnerável política e militarmente e daí que deve preparar-se para enfrentar, no mar e em terra, os imensos desafios que se configuram no século 21.
JC - A espionagem entre países não é novidade, principalmente partindo dos EUA. Mas o que muda com a divulgação massiva dessa espionagem pelo mundo?
MONIZ BANDEIRA - A espionagem continuará. Com fundamento em diversas fontes e nas revelações do professor visitante da Universidade de Berkeley (Califórnia) James Bamford, mostrei no livro que o sistema de espionagem estabelecido pela ?Agência de Segurança Nacional? (NSA) começou a funcionar há mais de meio século e que as informações captadas pelo ?Echelon? (projeto secreto de coleta de dados através de interceptação de sinais de comunicação), que tem a NSA e o ?Quartel-General de Comunicações do Governo? (GCHQ) da Grã-Bretanha, eram sempre atualizadas e orientavam as mais diversas iniciativas. A NSA, em 1994, não só interceptou fax e chamadas telefônicas entre o consórcio europeu Airbus e o governo da Arábia Saudita, permitindo ao governo americano intervir em favor da Boeing, como teve decisivo papel na concorrência para a montagem do ?Sistema de Vigilância da Amazônia? (SIVAM), pelo Brasil, e assegurou a vitória da Raytheon, companhia encarregada da manutenção e serviços de engenharia da estação de interceptação de satélites do sistema ?Echelon?. Informado de que a empresa francesa venceria a licitação, o então presidente Bill Clinton falou com o presidente Fernando Henrique Cardoso e mudou o resultado. Os serviços de inteligência dos EUA tentaram várias vezes negar que colaboraram com as corporações industriais. Esse sistema de espionagem teve como objetivo inicial captar mensagens e comunicações diplomáticas entre governos estrangeiros e suas embaixadas. Com o desenvolvimento da tecnologia, ampliou-se sua utilização. Os EUA passaram a utilizá-lo para interceptar comunicações internacionais via satélite, como telefonemas, faxes, mensagens de internet, por meio de equipamentos instalados em Elmendorf (Alasca), Yakima (Estado de Washington), Sugar Grove (Virgínia Ocidental), Porto Rico e Guam (Oceano Pacífico), bem como nas embaixadas e bases aéreas militares.
JC - Desde quando o Brasil se tornou alvo de interesse das grandes potências?
MONIZ BANDEIRA - Desde sempre. Porém, a única potência capaz de configurar qualquer ameaça, ainda que remota, para o Brasil são os EUA, dado que não mais obedece às diretrizes emanadas do Pentágono e do Departamento de Estado. O jornalista Glenn Greenwald, que divulgou os documentos da NSA, declarou em entrevista, a respeito do Brasil, que o governo americano sempre olha como ameaça países que nem sempre lhe obedecem. Quanto mais desobedecer, mais será visto como ameaça. O Brasil tornou-se, portanto, alvo estratégico para a espionagem dos EUA. Em 2010 e 2011, na condição de membro temporário do Conselho de Segurança da ONU, não se alinhou aos EUA em seu objetivo de impor sanções e isolar internacionalmente Irã, Líbia e Síria. A percepção em Washington é de que a crescente preeminência global do Brasil e seu envolvimento em várias questões internacionais levarão inevitavelmente a disputas com os EUA nos níveis comercial e político.
JC - Até quando o Império Americano poderá se manter? Quem são os favoritos a saírem vitoriosos da Segunda Guerra Fria?
MONIZ BANDEIRA - Os EUA não serão destruídos militarmente por nenhuma outra potência. Hoje, ainda detêm o monopólio da moeda de reserva internacional, o dólar, que só Washington pode determinar a emissão e, com a emissão de papéis podres e postos em circulação, sem lastro, financiar seus déficits orçamentários e a dívida pública. Contudo, o Império Americano desmoronará sob o peso de suas próprias contradições econômicas, de suas dívidas. Não poderá indefinidamente emitir dólares sem lastros para comprar petróleo e todas as mercadorias das quais depende, e depender do financiamento de outros países, que compram os bônus do tesouro americano, para financiar o consumo doméstico, que excede a produção nacional, e financiar as guerras de que necessita para subsidiar a indústria bélica e sua cadeia produtiva, que em larga escala sustenta sua economia. E essa é a maior ameaça que enfrenta e que, certamente, produzirá o colapso americano. E não há de demorar séculos como aconteceu com o Império Romano. A queda do Império Americano, provavelmente, ocorrerá ao longo do século 21.?
FONTE: entrevista do ?Jornal do Commércio? com Luiz Alberto Moniz Bandeira. Transcrita no portal da FAB (http://www.fab.mil.br/notimp#n69181).