Não é todos os dias que um antigo chefe do Serviço de Segurança do Ministério da Defesa alemão revela informação acerca das correias que atam o regime político da República Federal da Alemanha (RFA). O livro de Gerd-Helmut Komossa, intitulado "A carta alemã. O jogo obscuro dos serviços secretos"
(Die Deutsche Karte. Das verdeckte Spiel der geheimen Dienste. Ares-Verlag, Graz 2007.-230 S.) é uma verdadeira raridade. Ao focar as questões mais penosas para os alemães, o autor apela às profundezas da sua auto-consciência nacional, ignoradas durante décadas pelos Estados Unidos e seus aliados ocidentais.
"A carta alemã" narra as contradições escondidas mas extremamente agudas entre os EUA e a RFA ? o que ainda não é muito falado nem muito livremente. O livro foi publicado em Julho de 2007, na Áustria. Naturalmente, o aparecimento e a promoção de tal espécie de livros na Alemanha seria impossível. Contudo, o facto de o livro ter sido publicado, contra todas as probabilidades, mostra que a sociedade alemã não aprecia ser tratada como "o vassalo dos EUA" (expressão introduzida pelo antigo conselheiro de segurança nacional dos EUA Zbigniew Bzhezinsky para descrever a Europa pós-1945) e está pronta para perceber a verdade acerca da sua discriminação após a Segunda Guerra Mundial.
É sobre tudo isso o livro do Sr. Komossa. Um pacto datado de 21 de Maio de 1949, o qual recebeu a categoria de "máximo nível de confidencialidade" no Serviço de Inteligência Federal do país, contem restrições relativas à soberania da Alemanha até 2099. O pacto diz que os países aliados tem controle total sobre os mass media e as comunicações da Alemanha. Cada ministro dos Negócios Estrangeiros federal deve assinar o chamado "acto do chanceler" ("chancellor act") antes de tomar posse. As reservas ouro do país são tomadas pelos países aliados. Na verdade, todos o ministros alemães dos Negócios Estrangeiros, incluindo a actual, Angela Merkel, efectuou em Washington as suas primeiras visitas ao estrangeiro. A administração estado-unidense continua a imiscuir-se nos assuntos internos da Alemanha. Todos os partidos políticos na RFA estão sob controle estado-unidense, e a chamada imprensa "licenciada" na Alemanha acabou por ter um mesmo ainda mais enviesado de lavagem cerebral do que costumava ter sob o regime nazi. Os territórios da RFA permanecem sob ocupação dos EUA. Tudo isto podia ser tratado como uma ficção imaginativa de alguém se nada soubéssemos acerca do autor do livro.
O autor de "A carta alemã" acumulou a experiência de várias épocas históricas significativas da Alemanha, da Europa e do mundo. Agora general reformado da Bundeswehr, Komossa tomou parte na Segunda Guerra e posteriormente desempenhou um certo papel durante a confrontação da Guerra Fria. Possuindo uma plétora de informação, ele decidiu exprimir o seu criticismo quanto aos actuais mecanismos políticos internacionais.
Em 1943 Komossa entrou voluntariamente na Wehrmacht e foi enviado para a Frente Leste. Desde 9 de Maio de 1945 até 1 de Abril de 1949 ele foi mantido como prisioneiro dos soviéticos. Komossa descreve aqueles tempos como úteis para ele pois conseguiu fazer amigos entre muitos russos e entendeu que eles eram "outros russos", não aqueles descritos pelos apoiantes dos nazis alemães.
Em 1956 Komossa começou a sua carreira na Bundeswehr. É preciso ler "A carta alemã" para entender como aconteceu que aos alemães fosse permitido ter o seu exército nacional. Sob o pacto acima mencionado, à Alemanha foi concedida suficiente soberania para formar o exército em 1955. Segundo a Constituição, a Bundeswehr ("força de defesa federal", em alemão) trata apenas assuntos de defesa nacional. Contudo, os aliados ocidentais, liderados pelos EUA, perseguiam objectivos absolutamente diferentes. Queriam aumentar o número de tropas pelo recrutamento de soldados alemães, a quem dariam novo uniforme sem sinais de pertença a qualquer nação. Eles sabiam quão perfeitamente os alemães combateram durante a II guerra e queriam utilizá-los para a expansão global em grande escala. Os aliados gostariam de ter 500 mil soldados alemães. Também se esperava de Berlim que comprasse armamento e equipamento dos Estados Unidos.
Ao longo dos últimos 20 anos, a administração americana tem estado a tentar arduamente envolver a Alemanha nos seus projectos globais por todo o mundo. Mas todas as suas tentativas para pressionar Berlim em relação à Somália, Bósnia, Sérvia, Afeganistão e Iraque tiveram efeito contrário e provocaram o surgimento de novas abordagens em círculos políticos e públicos na Alemanha. O ressentimento encoberto em relação à política dos EUA atingiu um ponto crítico. Berlim e Washington têm visões polares do papel e do lugar da nação alemã no mundo moderno.
Desde o princípio da década de 1990 muitos militares alemães mudaram a sua atitude em relação aos EUA e à NATO. A princípio, muitos oficiais alemães nada tinham contra os EUA e fizeram o seu serviço militar além mar, mas hoje a maior parte deles sente-se desapontada com a política de Washington. Eles vêem que a hegemonia americana conduz à destruição do sistema económico e social de estados separados e de todas as macro-regiões, ao passo que a "ordem americana" não é nada senão outro nome para um caos...
Gerd-Helmut Komossa ocupou postos importantes na Bundeswehr, chefiou o Serviço de Segurança Militar nacional, e era muitas vezes chamado de "soldado com pensamento político". Hoje ele fala contra a ideia de utilizar a Bundeswehr como exército de intervenção uma vez que as forças armadas alemãs tem objectivos puramente defensivos.
Nesse meio tempo, Washington está a tornar-se cada vez mais persistente na atracção de alemães para que se juntem a tropas de coligação em diferentes regiões do mundo. Berlim foi forçada a enviar tropas para o Afeganistão. Mas os aliados americanos disseram que não era bastante. O secretário-geral da NATO, Jaap de Hoop Scheffer, recentemente acusou unidades da Bundeswehr no Afeganistão de tentarem permanecer neutras nas regiões do norte enquanto outras tropas estavam a combater no sul. Ele também exigiu que a Bundeswehr ampliasse a sua missão para o Sul e fosse mais flexível na cooperação com o exército da coligação.
No seu livro, Komossa pergunta-se se é possível que jovens alemães sejam recrutados não para defender a sua pátria mas para assistir diferentes estruturas internacionais na implementação dos seus projectos, os quais nada têm a dar à Alemanha e à região europeia em geral. "Será isso que o nosso povo espera da Bundeswehr? E não será isto, mais uma vez, tornar os soldados alemães 'assassinos' aos olhos de outros povos?", pergunta Komossa. Contudo, os EUA e seus aliados não estão preocupados com questões de moral uma vez que o pacto secreto expira apenas em 2099.
A elite intelectual da Alemanha agora gastará muito tempo a pensar acerca da chocante informação do Sr. Komossa, revelada no seu livro. Contudo, já é claro que uma nação com tão ricas tradições culturais e históricas não mais suportará estas humilhantes circunstâncias. "A carta alemã" de Gerd-Helmut Komossa marcou outro passo rumo à ordem mundial multipolar, e a adiada transformação da Alemanha num país soberano também será um passo importante na direcção certa. Podemos dizer isso com certeza.
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